Falar sobre a dor
De ficar viúva
Nunca seria simples,
Se contentar em dirigir
Todos os dias até o cemitério
Para levar flores,
E contar da dor que sente,
Deixar uma carta,
Com um beijo sobre a lápide,
Nunca seria o suficiente.
Rebeca atingiu seu limite
No que se refere a sofrer,
Contudo, Marcelo retirou
O carro da garagem
Buzinou para avisar
Que estava pronto pra levá-la,
E Rebeca decidiu se apressar.
Abrindo a porta de vestido longo,
Viu uma nova flor no jardim
Que balançou mais intensa
E liberou um aroma delicado
Que seu esposo merecia sentir,
Reconhecer,
E ela sentiu que precisava dividir
Este sentimento de alívio
E esperança que teve,
Então, fechou a porta rápida,
Não percebeu que prendeu
O vestido nela,
E se apressou para o lado
Da flor segurando
O buquê de rosas costumeiro.
O vestido preso a reteve
Ainda sobre a escada,
Ela perdeu o equilíbrio,
Caiu sobre a barriga,
Sangrou até seu bebê
Sair pelo líquido,
Sozinha e insegura.
Marcelo correu para ajudar,
Ela pediu para ir levar
O buquê,
Ignorou a outra flor,
Sentou ao lado da lápide,
Contou de sua dor
Enquanto sangrava
Sem parar.
Marcelo, o motorista,
Ficou no carro,
Do lado de fora do cemitério,
Rebeca não resistiu,
Chorou intensa e triste,
Pôs suas mãos contra a lápide
E a abriu.
Ali encontrou o esposo,
Se perdendo entre a madeira
Do caixão escuro de veludo.
Seus lábios selados e pálidos,
Olhos fechados,
Rosto sem expressão,
Ele não viu sua dor,
Não se compadeceu
De seu sofrimento.
Indignada,
Pegou a haste da roseira,
E o agrediu,
Arranhou seu rosto
Até tirar a pele,
Rasgou seus lábios
Para que se comparecesse.
Um mês,
Um mês sem ele,
E o filho o chamava,
Não resistiu ao pranto,
Não se contentou
Com a oportunidade de viver,
Foi atrás do pai,
Galgou o sonho de todo inocente,
Conhecer o colo fraterno.
Indignada,
Chorou até não ver
Mais nada a sua frente,
Então, o caixão descolou,
Ela arrancou sua parede,
E retirou de dentro
Da lápide de mármore.
Soltou a sua frente,
O veludo azul ficou molhado
No mesmo instante
Com sua dor,
Em um mês em que Tiago
Estava ali,
Nenhuma gota de sangue,
Suor ou secreção
Saiu dele que molhasse
O pano,
Contudo, num único
Minuto de pranto de Rebeca,
Tudo escorreu por lágrimas
Abaixo.
Ela retirou o tecido,
Riscou com os espinhos
Da roseira,
Duas horas de choro
Depois,
Viu que desenhou o rosto
De Tiago ali.
O abandonador,
O amor que partiu
Para deixá-la sozinha
E grávida,
Olhou entre suas pernas abertas,
E havia uma poça de sangue
Entre elas,
E ali: algo.
O filho escorreu.
Usando sangue, dor e pranto,
Ela pegou a pele do esposo,
E colocou sobre o desenho,
Pegou grama, terra,
E algo do mármore,
Que não foi difícil quebrar,
Ao bater a parte da madeira
Do caixão contra ele.
A madeira se partiu
Em partes menores,
E o mármore se soltou.
Juntou suas roupas,
Rasgou até a cueca.
Maldito.
A deixou.
Preferiu a morte.
Desenhado o rosto
Do esposo morto,
Desenhou o filho,
Fez um pequeno bebê
Na altura do seu peito,
Como se ele o segurasse,
Então, ergueu o vestido,
Encontrou o grosso
Do seu sangue,
A espessura de algo nele,
A formatura de um bebê,
O bebê que o pai voltou
Para buscar,
O entregou.
Esmagou o que restou daquilo,
E colocou na peça de madeira,
Cravejada de dor,
Espinhos, pranto, sangue e pele.
Colocou um brilho amarelo
No olhar de cada um,
Desenhado pelo mármore
Do mesmo tom.
Pôs no sol para secar,
Trabalhou com o tecido
Cada detalhe,
Juntou alguns ossos
Para relevo da obra,
No fundo da tela
Coloriu com o próprio sangue.
Depois disso,
Secou o choro,
Que por si próprio
Desistiu de fazer luto.
Fechou o caixão,
Soltou a lápide sobre
O mármore de volta,
Nada pareceu ter sido mexido,
Nem a fotografia de Tiago
Que lhe sorria do lado de fora,
Nem sua pele
Sentiu qualquer coisa,
Ou os ossos.
Abriu a caixa da lápide,
Onde se colocava as flores,
E soltou lá dentro sua tela,
A cor do esposo
Ganhou tonalidade e vigor,
O filho ganhou forma,
Ambos sorriam felizes,
Estavam distantes agora,
E juntos.
Chaveou a caixinha,
Fez uma oração pra ambos,
Calou sua dor.