Ela o amava com toda a alma, se entregou a ele
profundamente,
Mas a cada vez em que se olhava no espelho não se
encontrava,
Ele a deixava sem saída, tragava a sua liberdade, lhe tirava
as escolhas,
Presa a uma vida antiquada ausente de tudo que sonhava,
No início, tudo era perfeito, parecia que nada atrapalharia,
As discussões eram caladas com beijos, as lágrimas
esquecidas,
Pouco antes do amanhecer, assim que ele se arrumava para o
trabalho,
Ela acompanhava a rotina dele, fazia o café, preparava a
mesa,
Ignorava as noites percorridas insones, vazias de sonhos,
com teor de pesadelo,
Fingia uma dor de cabeça para tentar se livrar das
investidas,
Nunca esquecia o beijo de bom dia e a indagação de como tinha
dormido,
Ele permanecia na cama o máximo que podia, levantava tomava
o café e saia,
Ela o seguia até a porta com as chaves em mãos, entregava a
ele seu melhor beijo,
Com o cachorrinho no colo, ambos acenavam desejando êxito,
Nunca esqueciam o abraço apertado dado, os três, em
conjunto,
Com aquele sorriso de promessa de que tudo se sairia bem,
Olhos brilhavam para o horizonte, mas dentro dela algo não
estava satisfeito,
A casa era humilde e feliz, porém, os móveis eram escassos,
a comida era suficiente,
Mas a cada vez em que colocava a cabeça no travesseiro, as
preocupações vinham,
Tiravam seu sono e a indagavam sobre como poderiam pagar as
contas ao final de cada mês?
A luz, a água, as roupas, os carnês... como poderiam
satisfazer as necessidades da casa?
Ela pensava em buscar um trabalho, era jovem teria sucesso com
o que quer que fosse,
Acreditava em si mesma, sempre se saíra bem com os estudos,
poderia auxiliar nas despesas,
Ele, porém, negava-se veemente a isso, apegava-se a um ciúme
desmedido,
Ou algo deste teor escondido por trás de um machismo
predominante,
Negava a qualidade de tudo que ela se esforçava para fazer,
Procurava afazeres na casa alegando estarem malfeitos,
Quando olhava-a, ela sentia que não era vista, parecia um
reflexo,
As roupas que vestia, as mesmas que comprara outrora para
agradar
Não serviam aos gostos dele, havia sempre algo sobre o qual
reclamar,
A comida, a qual ele sabia de antemão sobre sua falta de
técnica:
Era rejeitada; as flores sobre a mesa - esmoreciam, não
conseguia contentar,
Os costumes que ela detinha eram renunciados, nada servia ou
o agradava,
Os bilhetes deixados pelos cantos, as cartas metradas de
outrora não convinham,
O beijo que antes selava o eu te amo de ambos, agora tinha
gosto de ódio,
Algo explodia dentro dela de forma incontrolável: o gosto
amargo do fracasso,
Havia falta de muitas coisas pelos poucos cômodos da casa,
Principalmente do amor que os uniu em promessa de casamento,
O que os mantinha unidos já não era mais sentimento, mas sim
um pranto,
Silencioso, que embebia cada frase pronunciada por ambos,
Ela tentava a todo custo sustentar o amor falso para os
vizinhos,
Ele negava-se a qualquer ideia que proviesse dela, com uma
espécie de desprezo,
Os conselhos eram deixados de lado, os beijos ficavam
escassos,
Os abraços repudiavam o suor de seus rostos, a distância
tomava forma,
E os afastava, as ideias não combinavam, as piadas não
soavam de bom tom,
Havia um vazio crescente dentro dela, ela o saciava através
da pouca comida,
Recusava ver sua imagem refletida ante a ausência de um
espelho a altura,
Ante ao medo do que pudesse encontrar, engordava, se
rejeitava,
A certidão de casamento em que uniram seus nomes, os ratos
roeram,
A mesma em que, através de um ato de fúria ela havia
rasgado,
Aquele gesto ele sentiu, ela pode ver as lágrimas brotarem
em seu olhar,
O restante do papel os ratos roeram formando o retrato de um
coração,
Bastante romântico e insatisfeito para ambos, será que
sentiam sua emoção?
No dia em que conseguiu encarar seu próprio reflexo, ela se
assustara,
O espelho era pequeno, quebrado, a refletia em partes e
todas eram repulsivas,
Ela dera um soco contra a parede, machucara alguns dedos,
Mas sua alma sangrava, havia arrependimento e algo mais
presente entre eles,
Ela tentava buscar o homem por quem havia se apaixonado, mas
ele estava em falta,
Poderia estar na casa da sogra, na mesa de baralho ou em
qualquer outro lugar,
Distante demais dela, ele estaria a evita-la ou evitava
encarar a decisão errônea?
Ou, então, sua necessidade por contato era demasiada? Ela
ficava reclusa,
Embora sentisse falta de carinho, de gestos que a deixassem
satisfeita,
Preferia ficar recolhida, rejeitava qualquer forma de contato,
se apegava ao animal,
As palavras vazias já não preenchiam os espaços e o vazio
dentro dela crescia,
Não conseguia pronunciar mais o eu te amo olhando em seus
olhos – o abraço se afrouxava,
Quando finalmente conseguia dormir, pesadelos a envolviam,
Acordava assustada como se estivesse sendo esmagada por algo
estranho,
Encontrava a perna dele sobreposta a sua, amortecendo-a,
contendo-a?
O espaço da cama que ela adorava agora estava reduzido,
Ele continuava dormindo, desatento enquanto o seu redor
desabava,
Mesmo quando as tempestades vinham em fúria contra a casa,
Mesmo quando tudo ao redor rompia e gritava alto demais para
se calar,
Ele permanecia adormecido em seu berço, desatento a tudo,
avesso a ela,
As árvores ao redor se partiam, galhos quebravam e vinham
contra a janela,
Ainda assim ele não via, nada afastava seu sono, nem mesmo o
medo dela,
Seus hábitos estavam sendo impedidos, um braço se jogava ao
redor dela,
Aquilo a feria, o travesseiro que gostava de abraçar tinha
outro dono,
O calor dele vinha contra ela e sufocava, por vezes, ele
roncava, ela se afligia,
Quando discutiam ele não conseguia manter as ideias fixas,
Partiam para os gritos ela encerrava aos prantos, o cachorro
sofria os solavancos,
Em busca de feri-la ele feria o animal, ela esmorecia e o
atacava - incontida,
Entre gritos, prantos e latidos, nada mais ficava no lugar naquela
casa,
Ela jogada no assoalho encerado, ele quebrando os móveis
ainda a serem pagos,
Cada vez que ele chegava bêbado, o cachorrinho se escondia
pelos cantos,
Ela se armava e o recebia com sua cautela medida,
reconhecido jeito compreensivo,
Tentava convence-lo sobre se dedicar a família, sobre tentar
uma vida melhor,
Ele caia na cama abrandado, deitava e dormia, acordava para
jantar,
Havia um descuido da parte dele, haviam sonhos na cabeça
dela,
Depois de tanto descaso, tantas brigas insatisfeitas,
convencera-o a ir embora,
Voltar para a casa dos pais não lhes daria as oportunidades de
que precisavam,
Morar sozinha visava um padrão de vida que ela não possuía,
Suas amigas, com quem poderia dividir aluguel, haviam se
dedicado a outras vidas,
As quais, ela se recusara a vida inteira, poderia pagar
pensão na casa de parentes,
Tendo o dinheiro que lhe cobrariam, ela sabia: não seria
aceita,
Sem alternativa em que se agarrar, juntou as malas o cachorro,
o marido e partira,
Conseguira depois de muitas custas um emprego simples,
Após sangue, suor e lágrimas, alcançou a tão sonhada
faculdade,
Neste ínterim, há muito tempo o sonho do casal havia se
desfeito,
Ele passava a maior parte do tempo no trabalho e ela se dedicava
aos estudos,
Certo dia, insatisfeita com a vida que levavam, que pouco
havia se modificado,
Ela olhou para ele com o carinho alcançado durante os anos
de convivência,
Então, o convenceu do contrário, juntar as roupas, entrar no
seu carro e ir embora,
Queria que ele fosse feliz, estava certa de que não seria ao
seu lado,
Agora sozinha, ela pagaria as contas que tinha em seu nome,
buscaria suas conquistas,
Buscaria oportunidades diferentes em que pudesse ser feliz
em seus sonhos,
Os beijos entre eles haviam acabado a tanto tempo, os
abraços eram dados a distância,
O diálogo havia se diferido, algo que pudesse se chamar
amizade os mantinha unidos...
Mas era insuficiente para aplacar seus vazios que os
consumia por dentro,
Ambos feriam e eram feridos, avessos a todas as promessas
que um dia acreditaram,
Solidão a dois tinha um nome, reconhecido e palpável a
separá-los,
Se um dia haviam sonhado juntos, hoje recusavam até mesmo isso.
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