Meu pai me liga,
Tarde da noite.
- filha, perdi o dente.
O que o pai faz agora?
Eu paro em frente a televisão,
Olho e penso...
- ora, outro dia quebrou
E o senhor colou com o superbonder.
Ele ficou triste.
- trás aqui, deixa eu ver.
Eu te ajudo pai.
Pareceu que ele chorou.
Na noite,
Ele veio com minha mãe,
Eu coloquei a galinha
Na panela,
Coloquei temperos,
Fritei a carne,
Depois acrescentei o arroz
E a água,
Deixei ferver.
Fechei com a tampa.
Fui da cozinha até a sala,
Mesmo a casa sendo pequena,
Eu sentia orgulho
Por ter estes compartimentos
Definidos,
Meus pais me ajudaram a adquiri-la,
Através da venda de uma
Parte da terra nossa
Lá da roça.
Cheguei por trás dele,
Ele estava sentado no sofá,
Coloquei a mão em seu ombro.
- o que lhe deixa tão triste, pai?
Perguntei.
- a perda do dente filha.
Ele disse.
Eu saí de trás do sofá,
Fui até a frente dele
E o olhei séria.
- mas por quê isto é tão importante?
Eu senti medo.
Não tínhamos dinheiro,
A situação se complicava.
Eu estava na metade
Do curso de direito,
Não tinha respaldo financeiro,
O trabalho rendia pouco,
E nem ao menos era na área
Jurídica,
O que não servia para contar
Como experiência
No instante de buscar trabalho.
- era o dente que o pai
Colocou pra tua formatura.
Meu coração se apertou
No peito,
Meu pai sempre teve a falta
De dentes,
Feria a boca,
Demorou a encontrar
Um molde que encaixasse.
E a formatura viria,
Um dia,
Em anos na verdade.
E eu sem perspectivas na área,
Tudo pendia de mal a pior.
Meu atual chefe
Exigia trabalho árduo
E não queria pagar o salário,
Simplesmente, passou a alegar
Falência.
Doa a quem ferisse.
Falido e sem um pila.
Os concursos estavam difíceis
E exigentes,
E a fraude se espalhava
Em todo certame.
Fraude e corrupção.
Os advogados estavam
Mudando os meios de pagar
Os funcionários,
Queriam pagar em porcentagem
Por trabalho e resultado,
A questão é que o resultado
Era do juiz,
Depende de sentença,
E sentença de argumento,
Mas, quem argumenta
Contra o óbvio?
Ora, culpado sempre foi culpado.
- a formatura demora ainda,
Vai ficar tudo bem.
Eu respondi indo para
A cozinha.
- a questão é que eu comi
Ao meio dia,
E engoli o dente,
Depois expeli no banheiro.
Isto era complicado,
Realmente difícil de resolver.
- não pode ser feito novo molde?
Eu indaguei.
- não, custava muito caro.
Eu fiquei seria
Mexendo a comida na panela
Pra não queimar.
A verdade é que nenhuma
Filha iria gostar
De ver o pai submetido
A uma condição destas.
A lei diz que todos são iguais
Em direitos e deveres,
Que ninguém merece ser discriminado,
E que a dignidade merece ser respeitada.
A saúde é direito,
O asseio pessoal é direito,
Pois, ninguém merece estar
Se sentindo desmoralizado
E denegrido socialmente.
E um sorriso é a estampa do rosto,
É através da boca
Que se fala e se expressa,
Um dente faz falta
E sua falta causa dor.
Lá na faculdade,
Eu advogava em um caso
Onde um homem pedia
Ao Estado o remédio Viagra
Que servia para ter ereção,
Ele queria ter uma vida
Sexual satisfatória
E meu pai,
Ali sentado,
Lutando por minha formatura,
Queria apenas um dente.
Um dente que se encaixasse
Perfeito na boca,
Sem ferir ou inflamar,
Um que não caísse ao morder
O pão,
Um que não tivesse que ser
Retirado do vaso,
Um dente limpo
Para uma boca digna
E respeitosa,
De um homem trabalhador
E bondoso.
A lei garante o trabalho,
E exige salário compatível,
Eu não estava nem ao menos
Recebendo,
Não tinha margem de emprego,
Estava pagando as parcelas da casa,
Corria o risco de despejo.
Um mínimo,
A lei exigia a todos um mínimo
Em direitos
Para que este ser humano
Pudesse contar com uma vida digna,
A lei dizia tanto
Mas não fazia nada.
Era proibido o trabalho escravo,
Mas meu pai,
Agricultor e ferido pelo trabalho,
Não conseguia se aposentar
Por invalidez,
Com a coluna em frangalhos,
E os braços sem os tendões
Que ligam eles aos ombros,
Ele estava apto a se virar,
Sobreviver do que pudesse.
Igualmente em direitos,
Igualdade de condições
De fazer os direitos
Serem preservados
E estabelecidos,
Para quem?
Marginalizado socialmente,
Eu logo teria um título de doutora
Pra lutar contra o descaso,
E o empurrão que o Estado
Gostava de dar,
Sem um escritório onde me colocar,
E sem saber por onde iniciar.
Comecei servindo o jantar.
A favor de um número minoritário,
Algumas mãos no poder,
Que concentravam direitos
Nas mãos de alguns poucos,
Para os demais
Uma fila de espera,
Com um telefone de contato,
Que sempre dá ocupado,
E lhe cobra a ligação.
Sem um dente,
Com medo de sorrir,
Oprimido para se expressar,
Enquanto o juiz despacha
Sentenças sem processar
Por causa pequenas,
Causas do pagar.
A faculdade sabe disto,
Ela não nos ensina a nos defender,
Há um sistema grande
Do dinheiro instaurado,
E há os outros
Que buscam estar entre estes poucos.
Um sistema enraigado
E engessado para sobreviver,
As custas do pequeno.
Outro dia,
Meu vizinho perdeu o CPF,
Então, ele tentou tirar segunda via,
Mas, ele não tinha como comprovar
Que era ele mesmo,
Ele não sabia onde fez o registro civil de nascimento,
E sem aquele documento
Ele não comprovava nem que nasceu.
Ele foi a um baile
Em cidade vizinha
E furtaram sua carteira
Com todos os documentos,
Depois disso,
Ele não teve mais nome,
Nem poderia ser identificado.
Apelidaram-no de ninguém.
Sabendo do que houve com ele,
O empregador dele
O demitiu,
Pois, ele não poderia comprovar
Que era ele próprio.
Então, ele estaria lá sem identificação
E isto compreende um crime,
E o responsável por ele
Estar lá,
Era a empresa,
Por isso,
Acharam que ele não faria
Diferença no grupo empregatício.
Ele ficou triste,
Sentou na calçada e chorou,
O dono da loja
Exigiu o pagamento
Pelo que ele devia lá,
Quitação de todas as parcelas.
- mas e se este que comprou
Aí não sou eu?
Ele gritou.
Os guardas o tiraram para fora,
Estava causando algazarra,
Mas, foi advertido:
- paga ou paga!
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